domingo, 27 de novembro de 2011

Luis Antonio - Gabriela - Cia. Mungunzá de Teatro (SP)




Chego a minha casa e permaneço em silêncio. Não quero ligar a TV ou ouvir música. Quero deixar o silêncio ajudar o acesso a tantos sentimentos, tantas reflexões de uma peça tão densa, tão poética, tão forte: Luiz Antônio – Gabriela.
Ao adentrar no teatro, vejo os atores e músicos fazendo os exercícios de aquecimento vocal na nossa frente (o que gosto muito) e traz uma interação com o público muito legal. Além de nos inserir na cena artística. O cenário já chama atenção pela idéia de desconstrução. Ou seja, nada daquele cenário muito certinho, medido. No entanto, deparo-me com um cenário muito rico, cheio de informações e que dialogam com os atores, com a história e com o público o tempo todo. Em especial, o artista plástico que desenhou durante o espetáculo em cena um corpo de “uma mulher”. Remetendo-nos ao personagem central da trama. Ademais, acrescento que foi muito bem usado o recurso das imagens na tela de projeção, na TV. Algumas cenas foram filmadas antes e outras eram filmadas, ali, pelos próprios autores. Levando-nos a um misto de teatro e cinema. Ou seria, um novo caminho do teatro onde as diversas linguagens artísticas se dialogam?
A história conta a vida de Luiz Antônio, filho mais velho de cinco irmãos. A peça é contada e dirigida pelo irmão, na vida real, de Luiz Antônio. A peça ganha destaque por diversos momentos poéticos e densos. A cena da surra do filho, pelo pai ao som de música e a sonoplastia (da referida surra) através de sacos plásticos foi uma brilhante sacada da direção. Muito belo também foi a cena das bexigas com o nome das pessoas que eram caras a Luiz Antonio: mãe, eu, vida, nascer. Nomes esses que também revelavam o teor da crise existencial vivida por Luiz Antonio. Crise que também apareceu – abertamente – nos cartazes que o personagem mostrava: “eu nasci no corpo errado”. A história traz um pouco de história do Brasil, não só ao retratar o âmbito político-social vivido pelos personagens, bem como ao mostrar que naquele tempo não haveria outra possibilidade de viver a homossexualidade a não ser sendo “travesti”. Isso já nos leva a refletir que a questão da homossexualidade não pode cair no lugar-comum da “escolha” ou de “porque eu sofri, então hoje...”. Interessante perceber que mesmo vivendo numa relação de amor e ódio entre o pai. Luiz Antonio sente falta e carinho pelo pai. Mesmo estando distante. E também sofre com a morte do pai. O pai, no entanto, revela ter carinho e aversão pelo filho. Aversão explicada na fala de um dos personagens. O pai não gosta de Luiz Antonio porque olhar para o filho, fruto de uma traição, é lembrar que traiu a esposa que tanto amou e que morreu no parto. Penso que na figura do pai deveriam espelhar-se vários pais daquela época e desse tempo também. Penso que na figura desse pai esconde-se uma perversão ao sentir prazer em “surrar” o filho. Algo vertendo para o lado do masoquismo. A madrasta apresentou, para mim, uma mulher desatenta às dores de Luiz Antônio. Muito bem construída e retratada a ansiedade dela, ao mostrar em cena uma personagem que falava demais e que, na maioria das vezes, estava comendo algo. Lembremos que o falar demais e comer demais são sinas sintomáticos da ansiedade. Muito belo também foi a passagem do tempo descrita de maneira musical e bibliográfica. Essa última mostrada não só na narrativa, bem como nas fotos e documentos reais – de Luiz Antonio – que apareciam na TV e na projeção. Uma das frases que me chamou atenção na peça (foram muitas, viu!) foi: “o truque de viver é a arte”. E o personagem central aparece várias vezes cantando e tocando algum instrumento em cena. Realmente, travesti ou não, Luiz Antonio, da vida real e do personagem – teve que usar da arte como truque de driblar as dores e as amarguras da vida. Outro momento do texto muito bonito foi: “A vida é tão curta e a gente se dando em pedaços. Não sei acumular afeto e ele vaza...” Lembrou-me Clarice Lispector. Mulher que soube refletir sobre coisas simples e sobre coisas densas. Luiz Antonio parecia realmente ter usado a poesia como truque. Pena que naquela época não foi acolhido pelo mar do respeito às diferenças. (E isso mudou hoje?)
Termino por aqui usando uma frase da peça para encerrar e falar das minhas últimas impressões: “Essa peça é um pedido de desculpa por eu não saber lidar com isso”. Então, espero que essa crítica seja um pedido de desculpa: pelas vezes que como o pai de Luiz Antonio e eu também me silenciei ante a dor do outro. Pelas vezes que encontrei um prazer-perverso em usar e denegrir o outro (mesmo que inconsciente). Pelas vezes que não ouvi o diferente que estava ao meu lado dizendo “eu nasci no corpo errado”, mas quem sou eu para julgar o certo e o errado? Por um acaso a balança da justiça pesa em minhas mãos? Pelas vezes que preferi, como a família de Luiz Antonio, que o problema fosse para longe, para libertar a família, a sociedade do peso da vergonha e da humilhação e não fui coerente com minha escolhas políticas, sociais, humanas, pessoais. Esse texto é um pedido de desculpas pelas vezes em que a arte nesse país não foi truque para uma vida melhor, mas foi instrumento de alienação nas mãos de alguns. Perdão, eu ainda não sei lidar com isso. Isso que é a complexidade do outro que toca e reflete bem aqui em mim.
Texto escrito por Luiz Carlos Filho

3 comentários:

  1. Belas palavras Luiz
    como sempre seus textos são maravilhosos e eu adoro todos que leio.

    gizelly

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  2. O silêncio profundo é a absorção da mensagem obtida e vida. É a oportunidade de perceber que o visual adentrou na mente, mesmo que seja em SILÊNCIO, horas tão positivo e tão inverso. Teatro é mágico. É a maior caixa de surpresa que se reinventa.

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  3. Pois é, Luiz, saímos todos pensativos diante da complexidade da peça tão bem retratada e dirigida. De alguma forma todos nós reviramos o solo de sentimentos com a projeção de um rapaz que se sentia tão diferente dos outros desde infância. As cobranças são tantas, imagina àquela época. Enfim, foi um espetáculo excelente e digno. Essa sua crítica tem muito do espírito da peça e me fez lembrar os principais atos. Parabéns mais uma vez!

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